DeepSeek representa uma oportunidade e exige cautela, afirma especialista
Aplicativo chinês revitaliza competição em um mercado polarizado pelo domínio norte-americano, mas bota em dúvida os métodos utilizados para capturar dados de internautas

Na última semana, o tombo histórico da bolsa de valores norte-americana trouxe um alerta a empresas e investidores: os Estados Unidos poderiam já não ser mais a referência no desenvolvimento de Inteligência Artificial. Na última terça-feira (27), Big Techs como Meta, Microsoft, Alphabet (Google), Oracle e Nvidia tiveram uma desvalorização recorde de seus papéis, atingindo US$ 1 trilhão, segundo estimativas da Bloomberg e do jornal Financial Times.
O responsável pela agitação do mercado foi o aplicativo DeepSeek, desenvolvido por uma pequena startup chinesa em Hangzhou. Equipada com um modelo operacional de baixo custo, a plataforma apresentou resultados promissores ao mundo, desbancando linguagens consagradas na internet, como o ChatGPT (OpenAI) e Gemini (Google) com suas respostas precisas, abas de referência e até transparência de algoritmos, algo então inédito no mercado.
Apesar do otimismo com o novo player, especialistas apontam problemas dentro do código-fonte da plataforma como a censura de pontos sensíveis a Pequim e o desrespeito à privacidade de dados de usuários do sistema operacional, alguns estabelecidos na LGPD. Na Itália, a plataforma foi banida da loja de aplicativos e na última sexta-feira (31), a agência de notícias Bloomberg noticiou que autoridades norte-americanas desconfiam que os chips H800 Nvidia, utilizados para o treinamento do algoritmo, foram roubados.
Para entender melhor o que está em jogo com o lançamento do DeepSeek, o Portal IAIH conversou com Adriano Carpinetti, Gerente de Telecom e Mobilidade na Montreal Informática, empresa com 30 anos de trajetória no mercado brasileiro. Na entrevista realizada por e-mail, o executivo explica a chegada do aplicativo no cenário internacional, fala sobre a polaridade presente no mercado de tecnologia e avalia uma parceria entre Brasil e China para o desenvolvimento da inteligência artificial.
Confira os melhores trechos da entrevista a seguir.
IAIH: Por que a Bolsa de Valores norte-americana entrou em pânico com o lançamento do DeepSeek?
Adriano Capinetti: O pânico no mercado foi impulsionado por diversos fatores, gerando uma desconfiança natural no setor de ações e colocando à prova as gigantes americanas de tecnologia. Os dois principais motivos que levaram a essa incerteza são:
O primeiro se trata do desempenho superior com menor custo. O modelo de IA desenvolvido pela DeepSeek apresentou resultados comparáveis ou até superiores aos dos modelos ocidentais mais avançados, utilizando uma fração dos recursos computacionais e financeiros. Enquanto empresas como a OpenAI investem centenas de milhões ou até bilhões de dólares no desenvolvimento de suas tecnologias, a DeepSeek conseguiu criar seu modelo básico com um orçamento de apenas US$ 5,6 milhões, segundo divulgado.
O segundo diz respeito às preocupações com a competitividade. O sucesso do DeepSeek levantou sérias dúvidas sobre a capacidade das empresas americanas de manter sua liderança no setor de IA. A eficiência e o baixo custo da tecnologia chinesa sugerem que as gigantes dos EUA podem estar superinvestindo em infraestruturas caras e pouco otimizadas. Isso pode impactar suas avaliações de mercado e obrigá-las a repensar suas estratégias futuras.
Em pouco menos de 24h, alguns governos já tomaram providências para barrar a app chinês. O DeepSeek é uma ameaça ao mercado de IA?
A principal preocupação gira em torno da privacidade e segurança dos dados. Empresas e agências governamentais ao redor do mundo estão adotando medidas para restringir o acesso de seus funcionários às ferramentas da DeepSeek, temendo possíveis vazamentos de informações para o governo chinês. O receio central é que os dados processados pelo modelo de inteligência artificial possam ser acessados por autoridades chinesas, além do risco de violações de patentes.
A startup chinesa pode ser mais um ator na nova fase da guerra comercial entre Estados Unidos e China?
A startup chinesa pode, de fato, se tornar mais um protagonista na guerra comercial entre EUA e China. O Projeto Stargate, lançado na era Trump, faz parte dos esforços norte-americanos para conter o avanço tecnológico chinês, especialmente em áreas estratégicas como inteligência artificial, semicondutores e telecomunicações.
O sucesso dessa estratégia dependerá da imposição de sanções e restrições, um caminho que já foi trilhado no passado com empresas como Huawei e DJI. Essas barreiras forçaram a China a se reinventar, impulsionando o desenvolvimento de seus próprios semicondutores e sistemas operacionais. Um exemplo claro disso foi o lançamento do HarmonyOS, criado para substituir o Android nos dispositivos chineses.
Embora as restrições possam desacelerar o crescimento de startups chinesas, é pouco provável que consigam estagnar seu avanço. A disputa tecnológica entre EUA e China deve se intensificar nos próximos anos, moldando o futuro da inovação global.

Na avaliação de Capinetti, o DeepSeek injeta fôlego para um mercado dominado pelas soluções norte-americanas. Foto: Divulgação
Seguindo nessa linha, estamos diante da quebra do paradigma norte-americano de tecnologia?
Adriano Capinetti: Sempre usamos a frase “vai reclamar com o concorrente” para descrever um monopólio, e a chegada da DeepSeek exemplifica bem essa lógica. Até então, o mercado de inteligência artificial estava refém de um verdadeiro cartel de big techs americanas, que ditavam regras, preços e os rumos dessa tecnologia. No entanto, a DeepSeek rompeu essa bolha, provando que sempre haverá uma segunda opção e uma nova visão.
Mais do que ampliar a concorrência e reduzir a dependência de poucos players, essa mudança abre caminho para uma discussão essencial: a soberania digital. Durante anos, empresas, países e até pesquisadores tiveram que se submeter às plataformas e modelos de IA das gigantes do Vale do Silício, sem alternativas viáveis. Com o surgimento de novas soluções, cresce a possibilidade de que cada região desenvolva suas próprias tecnologias, adaptadas às suas necessidades e valores. Isso significa mais inovação, maior controle sobre dados estratégicos e menos vulnerabilidade às decisões de empresas estrangeiras.
A competição no setor de IA não é apenas uma questão de mercado, mas também de liberdade tecnológica. Com mais opções disponíveis, os usuários deixam de ser reféns de monopólios e ganham poder de escolha. A DeepSeek é um exemplo de que a inovação sempre encontra caminhos para romper barreiras, e este é apenas o começo de uma nova era na inteligência artificial.
O que a chegada do DeepSeek representa para o mercado brasileiro?
A chegada do DeepSeek intensifica a competição no setor de IA, ampliando o acesso a modelos avançados e acelerando a democratização da informação. Para o mercado brasileiro, isso pode significar mais inovação, redução da dependência de tecnologias estrangeiras e novas oportunidades para empresas e desenvolvedores locais explorarem soluções baseadas em IA.
Em termos práticos, o que a plataforma traz de novidades para o público brasileiro? Ela desequilibra um mercado que era dominado pelo ChatGPT?
Para empresas como a Montreal, que lidam com dados sensíveis, o uso de plataformas de IA sempre exigiu cautela. A maior preocupação está na exposição de informações em ambientes sem controle eficiente, tornando o compartilhamento de dados um desafio.
Com o lançamento do primeiro modelo, o "R1", a nova plataforma inova ao permitir que empresas e desenvolvedores baixem os modelos e os utilizem em ambientes controlados. Isso garante total segurança, eliminando riscos de vazamento de informações.
Essa abordagem representa um avanço significativo para o público brasileiro, pois oferece uma alternativa mais segura ao mercado de IA, que antes era dominado pelo ChatGPT. Além de promover mais confiança no uso da tecnologia, a novidade pode acelerar a adoção de soluções baseadas em IA por empresas que antes hesitavam devido a preocupações com privacidade e segurança.
No futuro, também podemos pensar em potenciais parcerias entre o governo chinês e o brasileiro nas áreas de inteligência artificial?
Adriano Capinetti: A China já é o principal parceiro econômico do Brasil, tornando inevitável uma maior aproximação entre os dois países. Além disso, diante das restrições impostas pelos EUA a empresas chinesas, a tendência é que a China busque expandir seus negócios globalmente, e o Brasil figura como um dos principais candidatos nessa estratégia.
No contexto da inteligência artificial, o Brasil pode se beneficiar significativamente do know-how de empresas chinesas para o desenvolvimento conjunto de aplicações em setores estratégicos, como agricultura, segurança, saúde e infraestrutura urbana. Embora possam existir desafios geopolíticos, o interesse mútuo no avanço tecnológico e econômico tende a superar possíveis barreiras, favorecendo futuras parcerias entre os governos e empresas dos dois países.
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